A trajetória artística de Benedito Ferreira é ampla e multifacetada. Diretor de artes desde 2008 e artista visual premiado, com participações e colaborações em diversos países, como Portugal, França, Alemanha, Holanda, Geórgia, Romênia e Coreia do Sul, o egresso do curso de Cinema e Audiovisual da UEG acaba de lançar o livro “Agora e pouco antes: direção de arte e cinema brasileiro”, em Goiânia. De volta a seu estado natal, ele conversa conosco para o quarto episódio do projeto Cinemas, Histórias e Laranjeiras.
CHL: Como foi a sua trajetória até o curso de Cinema e Audiovisual da UEG?
Benedito: Eu venho de uma cidade muito pequena do interior de Goiás, chamada Itapuranga, que fica próxima a Goiás Velho. Estudei em uma escola particular com uma metodologia de ensino curiosa, repleta de disciplinas variadas. Era um modelo educacional interessante para uma cidade do interior. Foi nessa escola que tive meus primeiros contatos mais próximos com a arte propriamente dita. Isso me ajudou a refletir sobre para onde direcionar minha atenção, já que sempre tive dificuldades com as disciplinas de exatas, como matemática, biologia e química. Nunca tive interesse por essas áreas e, inclusive, os professores eram bastante complacentes com meu desempenho medíocre. Eu mal sabia somar e costumava desenhar durante as aulas de química. Curiosamente, foi justamente o professor de química quem me apresentou ao cinema.
CHL: Seu professor de química?
Benedito: Sim. Ele era um colecionador de DVDs e tinha um acervo que ia de Godard a Kurosawa. A casa dele era repleta de filmes, e ele costumava me emprestar alguns DVDs. Grande parte do meu contato inicial com o cinema aconteceu graças a ele. Mas, naquela época, isso tudo ainda me parecia algo muito distante. Terminei o ensino médio em 2005 e entrei na UEG em 2006. No entanto, esse não era o curso que eu pretendia inicialmente. Sempre gostei muito de escrever e acreditava que o jornalismo era a profissão que mais combinava comigo naquele momento. Gostava de escrever, mas não queria fazer Direito ou ser professor. O jornalismo acabou sendo a minha primeira escolha. Fiz o vestibular da UFG, mas zerei a prova de Física. Restou-me então tentar o curso de Rádio e TV, recém-lançado na UEG, e acabei sendo aprovado. O cinema acabou se tornando uma válvula de escape. Curiosamente, o teatro também sempre esteve presente na minha vida. Desde pequeno, participava de pequenas peças como ator na minha cidade.
Esse envolvimento com as artes sempre esteve ao meu redor, muito influenciado pela minha mãe, que é historiadora. Acredito que essa sensibilidade artística vem um pouco daí. Além disso, tive outros exemplos na família: um tio músico e outro que era marceneiro. A arte sempre esteve presente na minha trajetória, e o contato com esse professor de química foi decisivo para que eu chegasse ao curso de Cinema da UEG.
CHL: Em que momento você percebeu a escrita como forma de arte?
Benedito: Sempre me destaquei nas aulas de redação. No Ensino Médio, tínhamos uma disciplina exclusiva de redação desde o primeiro ano, e eu costumava me sobressair. Sempre achei que o texto era o que mais me interessava. Ao mesmo tempo, sempre estive muito próximo da imagem. Hoje, no meu trabalho como artista e diretor, não busco dissolver a fronteira entre texto e imagem — acredito que essas linguagens se complementam. Em muitos momentos, o texto atua como imagem, e a imagem, como texto.
Quando eu escrevia redações, me encantava especialmente com a possibilidade de desenvolver textos narrativos e teatrais, mais do que crônicas. Naquele momento, ainda não sabia exatamente que caminhos aquela escrita poderia tomar, mas já era claro para mim que não seguiria nenhuma área ligada à saúde ou engenharia. Desde a infância, a arte já estava presente na minha vida, de forma muito natural.
CHL: Quais foram as obras que te marcaram?
Benedito: Eu me lembro de dois filmes que foram decisivos, que eu assisti no terceiro ano do Ensino Médio. Foi Pierrot le Fou, do Godard, uma experiência muito marcante, muito em razão do uso que o Godard faz das cores no filme. As cores primárias, azul, vermelho e amarelo, são cores que surgem de maneira muito especial no filme, vão pontuando aqueles momentos de dramaticidade ou de ironia que estão ali no filme. E também quando fui apresentado ao Almodóvar. Quando eu assisti o Fale com Ela, isso me marcou muito. Porque era um tipo de cinema que eu não tinha acesso nas videolocadoras.
CHL: Hoje, olhando para trás, você considera que essa formação no interior ainda ecoa no que você faz?
Benedito: Acho que o fato de ter vindo de uma cidade de 22 mil habitantes, não tem como escapar, é inescapável essa questão. Ela reverbera no trabalho da gente, no meu trabalho como artista. Eu me reconheço muito nesse trânsito de ter deixado essa cidade e ter me transferido para a Goiânia e depois para São Paulo. Acho que essa experiência resvala no resultado da imagem do meu trabalho, nas coisas que eu me identifico, na matéria, na essência que está no trabalho.
Não sei precisar, de maneira muito direta, como é que isso está mesmo. É curioso porque a cada cinco anos eu faço um exercício de olhar para as coisas que eu tenho produzido, para ver como é que as coisas se repetem, o que estava num trabalho que agora está recuperado no outro. E eu consigo perceber, sim, essa influência já pelo menos nos últimos 15 anos, dessa relação que eu mantenho com o meu local de origem.
Acho que eu detestaria vir de outro lugar porque eu estou muito contente, muito feliz com o fato de vir do interior e ter feito esse movimento. Isso está presente no meu trabalho e reverbera, inclusive, no modo como eu gosto de tratar os meus personagens e de vê-los, de construí-los nos filmes que eu dirijo.
CHL: O que foi o curso da UEG para você no sentido de alargamento ou estreitamentos? Como foi a experiência?
Benedito: A primeira experiência foi bastante traumática, para ser bem sincero, porque era uma universidade que, naquele momento, carecia de muito. Existia um déficit muito grande porque o curso foi criado e nós não tínhamos muito instrumento, inclusive conceitual, para poder entender o que significava aquele curso naquele momento em que o mundo estava sofrendo uma série de transformações. As primeiras câmeras digitais mais acessíveis, a digitalização dos meios de produção. Isso foi em 2006. Então, o mundo estava em transformação, a tecnologia estava avançando. A gente não dispunha de muitos equipamentos, mas isso não era um fator limitante.
A gente conseguia produzir. Essa carência alimentava um desejo de produção intenso na minha turma. Isso foi muito importante para mim, porque quando você ingressa num projeto que é tão novo, cheio de dúvidas, de muitos jovens. Eu entrei com 17 anos, vindo de uma cidade, como eu disse, de 22 mil habitantes. Então, foi um pouco assustador chegar naquele lugar que não tinha outros cursos. A gente tinha pouco diálogo com essa comunidade universitária.
A UEG tem essa característica, que é muito descentralizada. São várias unidades espalhadas pelo estado. Então, isso foi bastante difícil no começo, para entender a inserção da ideia de cinema nessa proposta pedagógica, no conceito desse curso, que deixa de ser chamado Rádio e TV para se chamar Audiovisual.
Para mim, no início, foi difícil, sim. Inclusive, pensei durante esse primeiro ano em largar para tentar jornalismo mesmo, porque era muito novo tudo aquilo, mas acabei persistindo por conta, muito em razão das amizades que fiz naquele momento. Acho que a gente tinha essa vontade de construir esse curso em comunhão, de participar efetivamente daquilo que estava sendo feito de forma muito experimental.
CHL: Dessa produção experimental que vocês puderam fazer em conjunto, o que hoje você se recorda como destaque?
Benedito: Existiam em Goiânia alguns festivais de cinema, como a Goiânia Mostra Curtas, o FestiCine Goiânia, que eram festivais que também estavam, pelo menos o FestiCine, nas suas primeiras edições. Para a gente, naquele momento, era importante participar desses festivais de cinema, inclusive para afirmar o curso de Cinema, o curso de Audiovisual, nesses locais, nesses ambientes. Porque, até então, eram cursos, eram festivais que o curso de Jornalismo da UFG, os alunos produziam os filmes e os filmes dos jornalistas participavam desses festivais.
E a gente era um curso de Audiovisual que estava produzindo os primeiros filmes e que, para nós, era importante colocar os nossos filmes nesses festivais. Então me lembro do meu filme que se chama Eu já não caibo mais aqui, que é um filme de 2009, um filme muito simples, que foi feito de modo muito experimental. A gente reuniu alguns colegas para poder realizar esse trabalho.
Esse filme foi o primeiro filme a ser exibido, se não me engano, mas tenho quase certeza que foi o primeiro curta-metragem a ser exibido em festivais de cinema. O primeiro curta-metragem feito por alunos, que saiu do Parque das Laranjeiras e foi para os festivais de cinema. Então acho que isso foi uma vitória para a gente.
Eu me lembro de ficarmos muito felizes, inclusive com os prêmios que o filme recebeu. Ele recebeu dois prêmios no FestiCine Goiânia, em 2009. Inclusive isso me motivou a me transferir para São Paulo, na sequência. Eu percebi que precisava descobrir novas coisas. Acho que isso foi importante para a minha carreira e também para o entendimento de como é que a gente poderia fazer com que os filmes circulassem além da sala de aula.
CHL: Se você pudesse sugerir ou falar algo para os estudantes que hoje estão caminhando no caminho que você trilhou, o que diria?
Benedito: Eu diria que as experiências são muito individuais, mas a gente consegue perceber alguns traços nessas experiências que afetam o coletivo. Eu sugeriria que esse estudante utilizasse esse tempo de formação para ampliar o seu repertório criativo, artístico, que ele aproveite esse período que é tão decisivo, tão gostoso, importante, também angustiante, claro, para ampliar o repertório, para conhecer novos diretores e diretoras, para poder experimentar, filmar bastante, improvisar, ligar para um amigo ator e apontar uma câmera na cara dessa pessoa, entregar um texto para essa pessoa e testar. Eu sinto falta de experimentar.
Eu sei que a gente tem que pagar contas, que a gente tem que correr, dar um dobrado para poder fazer a vida seguir, mas a formação do artista é justamente essa, ela nunca está completa. A gente vai adquirindo experiência, mas os problemas vão se transformando, os dilemas vão se transformando também. Acho que esse momento de formação é um momento para poder testar, experimentar, descobrir coisas novas. É o momento de ser inventivo.
FICHA TÉCNICA:
Universidade Estadual de Goiás - UEG
Bacharelado em Cinema e Audiovisual
CriaLab|UEG - Laboratório de Pesquisas Criativas e Inovação em Audiovisual
Reportagem: José M. Umbelino Filho
Identidade Visual: Isabela Fleury
Coordenação do Projeto de Extensão: prof. Marcelo Costa
(Comunicação Setorial|UEG)