Em 2026, o curso de bacharelado em Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG) vai comemorar 20 anos de vida. Jovem, mas já repleto de histórias, ele representa um marco significativo no contexto audiovisual do estado, tanto em sua dimensão de pesquisa acadêmica quanto, e principalmente, na formação de profissionais de excelência que atuam no cenário local, nacional e internacional. A partir do curso, centenas de pessoas têm se dedicado a produzir cinema com gosto, cheiro e cor de Goiás, difundindo nossa cultura e sotaque através da mágica cinematográfica.
Para celebrar as conquistas e comemorar as duas décadas do curso, o CriaLab|UEG está realizando o projeto "Cinemas, Histórias e Laranjeiras". Até 2026, ele se propõe a colher depoimentos de egressos e egressas de destaque e de pessoas que ajudaram a construir o curso e apresentá-los na forma de entrevistas que serão publicadas nos sites institucionais da UEG e, ao final, reunidas em um e-book. Além disso, em 2026, o Projeto realizará o plantio de um pomar de laranjeiras na Unidade Universitária Goiânia-Laranjeiras, com uma árvore dedicada a cada turma. Confira a seguir a segunda entrevista da série, com a roteirista, diretora e contadora de histórias Larissa Fernandes.
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Foi um desafio conseguir bater um papo com a roteirista e diretora Larissa Fernandes, egressa do curso de Cinema e Audiovisual da UEG e atualmente diretora de núcleo da rede Globo de televisão. Agenda cheia, rotina de gravação intensa, e os convites - sempre recebidos por ela com muita educação e gentileza - precisavam ser postergados semana após semana. Como toda profissional de excelência, a Larissa tem que se desdobrar em muitas para cumprir todos os compromissos. Mas então, no comecinho de 2025, ela nos procura: “Agora acho que vamos conseguir!” Dito e feito. Numa tarde calorenta de sexta-feira, Larissa aparece na telinha do computador diretamente do Rio de Janeiro. E a prosa que se segue compõe um retrato inspirador para o projeto Cinemas, Histórias e Laranjeiras, idealizado pelo CriaLab|UEG.
Conta para a gente como tudo começou? De onde vem Larissa Fernandes, como começa sua história?
Larissa Fernandes - Bom, eu acredito que de onde a gente vem é o que nos compõe. Então, é difícil não falar de onde venho para poder explicar até onde cheguei. Nasci e cresci em Goiânia, mas minha família é do interior do Maranhão, de uma cidade bem pequena. A parte da minha mãe tem uma tradição mais rural, uma família que cresceu na roça. Ela veio para Goiânia quando já era adulta, e foi aqui que nasci. Minha família tem muitos filhos, muitos tios e sobrinhos. E por ser do Maranhão, com essa tradição mais do interior, sempre houve uma forte cultura oral. Não somos fazendeiros, somos mais roceiros mesmo, e essa cultura de contar histórias sempre esteve presente. Meu avô, por exemplo, gostava muito de contar causos, lendas e piadas. Isso acabou influenciando muito o meu desejo de também contar histórias.
Foi assim que, de alguma forma, fui me apaixonando pelas narrativas, principalmente as audiovisuais. O audiovisual, na verdade, nasceu de outra vivência. Nossa família não tinha muita grana para viagens ou passeios, então a nossa forma de lazer era assistir televisão. Eu cresci assistindo televisão, minha mãe sempre trabalhou muito, e sendo filha única, passava muito tempo sozinha em casa. A televisão foi minha companhia e, de certa forma, minha babá. A Xuxa foi minha babá, como a de tantas outras crianças da minha geração. Além disso, quando o videocassete chegou, passou a ser uma nova forma de lazer. A gente alugava filmes na locadora, e esses filmes se tornaram parte das minhas memórias afetivas, principalmente os momentos com minha família assistindo a esses filmes. Foi assim que o audiovisual entrou na minha vida.
Você se lembra de alguns filmes que te marcaram nessa época?
Lembro de muitos filmes importantes dos anos 90, como As Pontes de Madison e Titanic, que foi o primeiro filme que assisti no cinema. Eu tinha dez anos e vi no Cine Ritz. E, na época, assistia a filmes que talvez não fossem adequados para a minha idade, como Entrevista com o Vampiro e Drácula. Filmes clássicos também marcaram essa fase, como Romeu e Julieta. Essa relação com o audiovisual sempre foi muito forte. A televisão e as fitas cassete foram meu primeiro contato com esse universo, que depois se transformou em uma vontade de contar histórias através do cinema.
Você já tinha pensado em outras áreas antes de se decidir pelo audiovisual?
Sim, na verdade, durante um tempo, eu queria fazer biologia. Eu adoro animais, mas sabia que não seria capaz de trabalhar diretamente com eles. A minha vontade sempre foi estar em áreas de comunicação e arte, então achava que o jornalismo era o caminho mais próximo disso. Quando passei no vestibular, o curso de Rádio e TV foi o que eu escolhi. No entanto, logo depois a UEG reformulou a grade e transformou o curso em Cinema e Audiovisual. Fui da primeira turma de um curso de Cinema e Audiovisual de Goiás. Foi um grande marco, já que até então não havia graduação em cinema no estado.
Qual foi o momento em que você percebeu que queria estar não apenas como telespectadora, mas fazendo parte do audiovisual?
Acredito que, quando somos crianças, normalmente nos vemos mais na frente da câmera do que atrás dela. Eu sempre me imaginei como apresentadora de TV ou atriz. Eu era muito comunicativa e essa ideia de estar diante das câmeras foi o primeiro impulso. Mas, na faculdade, foi quando eu realmente comecei a entender a estrutura do audiovisual e as diversas funções envolvidas na produção de um conteúdo. Foi ali que percebi que minha paixão era, de fato, por todo o processo de construção das histórias, pela forma como essas histórias eram contadas.
Já que foram a primeira turma de audiovisual no estado, como foi o contato com a estrutura do curso?
Foi uma mistura de choque e deslumbre. O deslumbre veio de ver como as coisas realmente funcionam. Eu imaginava que bastava colocar a câmera em um lugar e pronto. Mas ao longo do curso percebi que é um processo muito mais complexo, que envolve muito estudo, dedicação e várias funções essenciais para que um projeto aconteça.
O choque foi o fato de estarmos todos aprendendo juntos. Não só nós, alunos, mas também os professores e a equipe técnica estavam em processo de adaptação. Não tínhamos muitos equipamentos, nossa biblioteca era pequena, a estrutura ainda estava se formando, mas isso acabou gerando uma criatividade muito grande, porque tivemos que inventar soluções e focar muito na teoria.
Com o tempo, a prática começou a acontecer mais diretamente no mercado. A faculdade firmou parcerias com profissionais da área, o que nos possibilitou estagiar em sets de filmagem. Isso foi muito importante para nós.
E como foi a sua experiência com a Panaceia Filmes?
A Panacea surgiu em 2010, logo após a faculdade. Durante o curso, discutíamos muito sobre a ideia de ter uma produtora. Quando terminei a faculdade, fui para São Paulo para fazer uma disciplina de mestrado, enquanto meus amigos da faculdade, como a Lidiana Reis, o Jarleo Barbosa, a Ludielma Laurentino e o Osvaldo Lelis, estavam em Goiânia formando a produtora.
A Panaceia foi fundamental na minha formação profissional. Durante a faculdade, participei de diversos projetos e, depois, quando a Panaceia começou a funcionar, trabalhei como produtora, roteirista e assistente de direção. Fiquei na produtora por uns dez anos, realizando curtas, festivais e até longas-metragens. Além disso, também produzimos uma revista de cinema chamada Janela e o Seminário Audiovisual de Produtoras e Produtores Independentes, que hoje é o SAPI.
A Panaceia foi um ponto crucial na minha carreira. Foi onde realmente aprendi e coloquei a mão na massa. Depois, após a dissolução da produtora, eu e a Lidiana seguimos juntas, criando a Sol A Pino Filmes.
E como foi a transição para projetos maiores, como a Globo e a Netflix?
Essa transição aconteceu a partir do momento em que comecei a desenvolver o roteiro de um longa-metragem e participei de diversos laboratórios. Foi nesses laboratórios que comecei a fazer conexões e a ser reconhecida como roteirista. Fui convidada a participar de um laboratório criativo, uma parceria entre a Netflix e uma produtora de Salvador em colaboração com uma produtora dos Estados Unidos. Esse programa funcionava como um curso voltado ao desenvolvimento de roteiristas negros de todo o Brasil. Fui indicada e selecionada, compondo um grupo de seis participantes.
Com o tempo, fui sendo reconhecida como uma roteirista de Goiânia. As pessoas comentavam: "Ah, conheci uma roteirista de Goiás!" Tem tudo a ver com conhecer pessoas e estar nos espaços onde profissionais da nossa área estão produzindo e pensando.
Conte um pouco mais sobre essa experiência para a gente.
No laboratório, tínhamos aulas e a missão de apresentar para a Netflix o desenvolvimento de uma série de TV. O processo durou cerca de sete meses, e ao final, realizamos um pitch para a empresa. A Netflix escolheu quatro projetos entre os dezesseis apresentados. Nessa segunda fase, os selecionados foram divididos em grupos de quatro roteiristas, cada um responsável pelo desenvolvimento de um dos projetos.
Havia uma grande expectativa de que algumas dessas séries fossem produzidas, e acredito que esse processo ainda esteja em andamento. Para mim, essa experiência foi muito enriquecedora. Desenvolvi minha prática como roteirista de séries de TV e conheci muitos profissionais da área.
E como foi sua experiência na Amazon Prime?
Nesse meio-tempo, fui indicada para uma sala de roteiro da Amazon, dedicada ao gênero terror. Minha seleção se deu por dois motivos: primeiro, porque Solina, meu roteiro de longa-metragem, apesar de não ser um filme de terror, pertence ao gênero do realismo fantástico, o que demonstra minha afinidade com narrativas desse tipo. Segundo, por ser de Goiás, assim como o criador da série, Renê França. Trabalhamos no projeto por mais de um ano, e foi uma experiência incrível. Cresci muito como roteirista nesse período. A sala de roteiro era virtual, reunindo profissionais de diferentes regiões do país.
Paralelamente, desenvolvi outros projetos, tanto individuais quanto em colaboração. Um deles foi o longa-metragem As Pés de Moleca e a Doceria da Bruxa de Maria Mole, que criei junto com Milena Magalhães. Inscrevemos o roteiro em um edital do Gloob, canal infantil, e fomos selecionadas. Recebemos suporte para o desenvolvimento do projeto, o que foi uma experiência muito enriquecedora, pois representou meu primeiro contato com a Globo.
Durante esse processo, tivemos a orientação da Rosane Svartman, autora de grandes sucessos da emissora, como Vai na Fé. Fiquei impressionada com a oportunidade de aprender diretamente com uma profissional de sua relevância. Ela leu nosso roteiro, apontou ajustes e compartilhou sua experiência, o que foi extremamente valioso.
O argumento desse projeto foi semifinalista no Prêmio Cabília, um importante reconhecimento para roteiristas mulheres no Brasil. Como parte da premiação, tivemos a oportunidade de participar de uma reunião com o departamento artístico da Globo, o que ampliou ainda mais nossas perspectivas profissionais.
Então foi assim que você chegou à Globo?
Sim! O departamento artístico estava em busca de novos talentos e queria trazer profissionais do mercado. Havia também um esforço para aumentar a diversidade, especialmente com a inclusão de mulheres de diferentes regiões, além do eixo Rio-São Paulo, e mulheres pretas.
Realizamos uma reunião online com a equipe da Globo, na qual o departamento artístico explicou seus objetivos e se apresentou. Depois de um tempo, entraram em contato comigo porque queriam me entrevistar.
Nessa entrevista, eles me conheciam apenas como roteirista, pois não sabiam que eu também era diretora. Meu nome ficou no radar deles, e me disseram que, caso surgisse um projeto compatível com meu perfil, entrariam em contato. Isso levou um ano.
Enquanto isso, continuei com meus trabalhos. Depois desse período, me procuraram novamente e disseram: "Larissa, apresentamos seu perfil para um diretor que está montando a equipe de direção da novela dele. Achamos que você tem o perfil ideal para o projeto e gostaríamos de te apresentar."
Na minha cabeça, imaginei que fosse apenas um protocolo, pois ele deveria estar entrevistando muitas pessoas. Foi quando conheci o André Câmara, diretor artístico de Amor Perfeito e, posteriormente, de Volta Por Cima. Ele me entrevistou, apresentei meus projetos, e ele decidiu me convidar para integrar sua equipe de direção.
Fiquei muito surpresa! Pensei: "Meu Deus, passei por um processo seletivo!" Foi como se tivesse passado no vestibular. Então me mudei para o Rio para trabalhar em Amor Perfeito, minha primeira novela, exibida no início de 2023. Hoje estou na minha terceira novela. Depois de Amor Perfeito, veio No Rancho Fundo, e agora Volta Por Cima. Está sendo uma experiência incrível!
O que você diria para um jovem que está se formando em Cinema e Audiovisual agora? Ou para a Larissa daquela época?
É uma pergunta difícil, porque cada trajetória é muito particular. Os caminhos acontecem de formas diferentes para cada pessoa.
Se pudesse falar com a Larissa daquela época, diria para ela se dedicar mais ao que gosta e confiar mais em si mesma. Durante muitos anos, fui muito insegura – e ainda sou. Então, eu a incentivaria a ter mais confiança, a se entregar mais ao que acredita e a ser um pouco mais paciente e calma. Também diria para ela ser menos cruel consigo mesma. Entender que está tentando, que está avançando, mesmo que de forma lenta. O importante é que o processo está acontecendo.
Acho que esse conselho vale também para quem está se formando agora no audiovisual: não tenha tantas certezas. Na verdade, o que mais nos move são as dúvidas, não as certezas. Quando você tem certeza demais, para de buscar, porque acredita que já sabe tudo. Mas a curiosidade, a necessidade de questionar, faz com que a gente vá atrás, explore mais, descubra novas possibilidades.
Sei que a juventude traz muita ansiedade. Falo isso como se fosse muito mais velha, mas, na verdade, ainda sou jovem também. Só que, com um pouco mais de experiência do que quem está saindo da faculdade agora, percebo que essa ansiedade nos faz acreditar que há um único caminho possível – e isso não é verdade.
Na minha turma, por exemplo, as pessoas seguiram rumos muito diferentes, e muitas estão bem-sucedidas em áreas diversas. O mercado audiovisual não se resume a um único espaço. A Globo, por exemplo, sempre chama atenção porque crescemos com a televisão. Mas hoje, as novas gerações já nasceram na era da internet, e isso muda completamente a relação com o audiovisual.
A internet trouxe novas formas de produzir e consumir conteúdo, e isso é uma grande oportunidade. O audiovisual pode se beneficiar muito desse novo cenário. Mas, para isso, é preciso se perguntar: "Será que estou aproveitando esse meio da melhor forma? Será que estou estudando o suficiente? Assistindo a filmes o bastante? Lendo o suficiente? Será que estou gastando tempo demais apenas consumindo conteúdo na internet, em vez de usá-la para criar e experimentar?"
Então, meu conselho seria esse: deixe as certezas para quando for mais velho. Agora, aproveite as dúvidas, porque são elas que vão te mover.
Acompanhe as publicações de "Cinemas, Histórias e Laranjeiras" aqui.
Ficha técnica:
Universidade Estadual de Goiás - UEG
Bacharelado em Cinema e Audiovisual
CriaLab|UEG - Laboratório de Pesquisas Criativas e Inovação em Audiovisual
Reportagem: José Eduardo Umbelino
Identidade Visual: Isabela Fleury
Coordenação do Projeto de Extensão: Prof. Marcelo Costa
(Comunicação Setorial|UEG)