Dizer que uma mulher descobriu o primeiro algoritmo a ser processado por uma máquina ou que inventou a comunicação sem fio não deveria causar surpresa. Marie Curie ser mãe de uma filha chamada física moderna não deveria ser motivo de estranhamento, mas de inspiração para outras tantas mulheres. Espanto seria contestar sua competência e abrir mão de tanto potencial.
O wifi que hoje permite que esse texto rompa as barreiras da tela só o faz graças à mente brilhante de uma mulher, a atriz de Hollywood Hedy Lamarr, e nada mais justo que usar desse instrumento para celebrar esse dia.
Além de homenagem, o 8 de março possui significado de mobilização para reafirmar o que já foi conquistado e cobrar igualdade de direitos. Sem padrões ou lugares impostos, a luta é para que as escolhas das mulheres sejam validadas e que o caminho seja possível.
Há séculos, as mulheres lutam por equidade e respeito na sociedade. Na história, os homens sempre tiveram protagonismo em vários setores. Para se ter uma ideia, somente em 1827 as meninas foram autorizadas a ingressar nos colégios e puderam estudar além da escola primária. E o acesso ao ensino superior só veio 52 anos depois, em 1879, e mesmo assim, a matrícula só era realizada perante a presença dos pais ou marido. Mas essa realidade mudou e atualmente as mulheres representam a maioria nesses espaços.
Segundo relatório da Education of Glance, de 2019, divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 25% das mulheres estão nas universidades, enquanto o número de homens é de apenas 18%. Contudo, apesar desse avanço, dados mundiais apresentados pela Unesco, em 2020, apontam que menos de 30% dos cientistas são mulheres.
Assim, ser mulher e cientista se mostra desafiante, inspirador e muito necessário. Isso é perceptível ao conhecer as histórias das mulheres que aqui serão homenageadas, sendo profissionais de diferentes áreas que juntas formam representatividade feminina. O que prova que mulheres ocupando as posições que desejam devem ser a regra e não a exceção.
Depoimentos
A Universidade Estadual de Goiás representa um exemplo positivo, com grande número de docentes e pesquisadoras em destaque, como é o caso da professora Marília Silva Vieira Pereira. A professora integra o quadro docente do Mestrado em Língua, Literatura e Interculturalidade (Poslli), no Câmpus Cora Coralina, na cidade de Goiás, atuando na área de Linguística, com ênfase em Sociolinguística.
Marília se dedica à docência universitária na UEG há 8 anos. Na Universidade, a professora realiza publicações e ressalta que ao falar de ciência é necessário ampliar o termo para além do imaginário dos laboratórios com seus microscópios e reagentes. “Penso também e, sobretudo, nas Ciências Humanas e Sociais, que fazemos no contato com o(a) outro(a), por meio de imersão e observação participante”, salienta.
No que se refere a área das linguagens, Marília explica que a produção de gramáticas e de grandes clássicos da linguística sempre foi dominada por homens. “É uma realidade paradoxal, quando pensamos que em nosso país, nas salas de aula da educação básica ao ensino superior, quem desempenha o ofício de ensinar a língua materna são, majoritariamente, as mulheres”. A pesquisadora lembra que a primeira gramática escrita por uma mulher brasileira data somente do século XXI, quando a saudosa Maria Helena de Moura Neves deixou como legado uma obra que se propôs a compreender o Português sob a ótica da ciência linguística.
Ao abordar a importância da mulher como cientista, a professora lembra feitos históricos. “Quando pensamos na importância das mulheres para o desenvolvimento da ciência, talvez as reconhecidas descobertas de Marie Curie sobre a teoria da radioatividade e dos elementos químicos polônio e rádio representem um marco. Desde então, a presença das mulheres na pesquisa tem tido uma expressividade cada vez maior”, destaca.
“A mulher tem papel importante no desenvolvimento da ciência assim como desempenha também o homem”, diz a professora Samantha Salomão Caramori, que atua no Câmpus Central da UEG, em Anápolis, e também no Programa de Pós-Graduação em Recursos Naturais do Cerrado. Sobre ser mulher e pesquisadora, ela conta que apesar dos esforços, a mulher tem que conciliar a carreira profissional com a família. “Vejo que devido a nossa história como sociedade, a mulher tem um desafio a mais na carreira, que é o de conciliar produtividade no trabalho, em casa e buscar qualidade de vida”, salienta.
A pesquisadora diz que desde quando ingressou na UEG, em 2003, com a titulação de mestre, já orientava estudantes de graduação na iniciação científica, via projeto de pesquisa aprovado na Pró-Reitoria de Pesquisa. “Em 2012 tive a oportunidade de aprovar meu primeiro projeto com financiamento externo, o qual permitiu a mim e à equipe que trabalha comigo instalarmos o Laboratório de Biotecnologia no Câmpus Central, atualmente com mais de 2 milhões de reais investidos em equipamentos por financiamentos de pesquisa”, diz com orgulho.
Quando se trata do protagonismo na ciência, a professora Hélida Ferreira da Cunha, também do Programa de Pós-Graduação em Recursos Naturais do Cerrado da UEG, diz que há estudos no Brasil e no mundo que demonstram que na área científica ainda há o protagonismo dos homens. O que os estudos mostram é que apesar do trabalho de excelência que as pesquisadoras realizam, elas não conseguem ocupar protagonismo da mesma forma que os homens”, reforça.
“Uma aluna minha do mestrado fez uma pesquisa sobre a presença de mulheres na ciência, com a participação de estudantes da educação básica. Duas percepções deles foram muito interessantes pra gente. Ficaram surpreendidos ao verem na nossa equipe cientistas mulheres, porque quando solicitados a descrever cientistas destacaram homens no laboratório, com jalecos, cabelos coloridos, explodindo coisas no laboratório. Depois da intervenção, a resposta era de mulheres cientistas trabalhando no laboratório normalmente, sem explodir coisas. Esse trabalho com as crianças mostra que a percepção delas é totalmente equivocada e baseada no que a ficção científica mostra”, destaca.
A pesquisadora diz que aqui no Brasil, no CNPq, existe um equilíbrio na distribuição dos bolsistas para pesquisadores homens e mulheres. “Apesar de ter um número equitativo entre homens e mulheres, inclusive com bolsas do CNPq, a gente continua vendo que nas publicações de maior impacto em revistas importantes, os homens vêm como primeiros autores”.
Trabalhando na UEG desde 2004, quando foi aprovada em concurso, Hélida logo se dedicou à pesquisa. “Estava no doutorado e então dei continuidade às pesquisas com alunos de iniciação científica”, explica. A pesquisa teve continuidade quando ingressou como docente nos mestrados em Recursos Naturais do Cerrado (Renac) e em Ensino de Ciências (PPEC). “Junto com os alunos da pós-graduação a pesquisa continua”, completa.
Doutora em Letras e Linguística, com ênfase na análise do discurso francês, Odália Bispo conta que durante o doutorado teve que conciliar a maternidade e os estudos. “Eu me lembro do dia em que eu fui fazer a prova seletiva e meu primeiro filho estava com dois meses, eu precisei interromper a prova algumas vezes porque eu tinha que amamentá-lo e todo o meu doutorado foi feito com ele nos meus braços”. E, segundo ela, passar por todos os percalços que passa uma mulher e mãe, tornou esse momento ainda mais bonito em sua vida.
Autora do livro “Saber, Poder e Resistência em discursos sobre o professor no Brasil” publicado pela editora Appris, a pesquisadora afirma que publicá-lo foi como a realização de um sonho. “A gente fica anos pensando um objeto, trabalhando, e quando terminei o produto, percebi a importância de contribuir para o campo do saber a qual pertenço”.
A professora já coordenou a Agência de Inovação da Universidade Estadual de Goiás e considera muito importante ocupar espaços de gestão: “Mesmo com as limitações que a gente encontra, porque muitas vezes a gestão de espaços mais imponentes fica a cargo da figura masculina, eu tenho conseguido estar nos espaços, influenciar na consciência política e social com relação ao papel da mulher e deixar a minha marca”, destaca.
Bióloga com doutorado e pós-doutorado em Medicina Tropical e Saúde Pública, a professora Luciana Damacena Silva conta que começou a carreira acadêmica um pouco mais tarde que o comum, algo que não a prejudicou ao olhar para tantas conquistas. Com relação à atuação feminina no cenário acadêmico, ela fala dos desafios que as mulheres enfrentam. “Conciliar o papel de esposa, mãe e profissional não é muito simples. Mas somos intensas e podemos tudo que acreditamos”, conclui.
Além disso, a professora de Biologia que atua no Câmpus Central da Universidade Estadual de Goiás, em Anápolis, traz uma fala importante sobre seu local de trabalho: “considero bastante expressiva a representatividade das mulheres na nossa Universidade”. E para além, deixa uma reivindicação. “Contamos com o compromisso dos nossos governantes em fortalecer essas conquistas tanto no âmbito social, quanto econômico”.
A servidora Rejane Borges da Rocha Castro, lotada na Unidade Universitária de Sanclerlândia, é secretária acadêmica, vice-presidente da Associação dos Servidores Técnico-Administrativos da Universidade Estadual de Goiás (Astueg), além de representante no Conselho Superior Universitário (CSU). Atuando a quase 15 anos na Universidade, é responsável por todo o acervo documental dos discentes e egressos, proporcionando meios para que o processo de ensino aprendizagem seja registrado de forma eficiente, em atenção às normas vigentes e aos interesses institucionais.
Segundo Rejane, ser mulher na UEG nunca foi um desafio isolado e explica: “Na instituição, muitas mulheres me inspiram, mulheres que sustentam a estrutura institucional e se esforçam por inovar, criar, reinventar, acolher, aprender e ensinar; todas muito inspiradoras”. E reflete sobre a relevância da participação das mulheres na instituição. “Aqui, estamos presentes nos mais diversos setores, em grande parte somos maioria e esse ingresso e permanência está intimamente ligado à evolução social”.
Representando as discentes da UEG, que hoje são 63% da totalidade de alunos, Isadora Rodrigues está cursando o sétimo período de Pedagogia no Câmpus de Ciências Socioeconômicas e Humanas de Anápolis. Ela observa esse número na prática: "vejo que a maioria dos estudantes são mulheres e o mesmo ocorre com o corpo docente”. Para além de um dado, ela enxerga o câmpus como um ambiente de luta em prol de pautas femininas. “Todas as mulheres que estão ali são guerreiras e isso é perceptível em qualquer oportunidade que a gente tenha de conversar com elas. No câmpus, eu vejo que a grande luta é feminina e isso é muito bom”.
Isadora mora em Pirenópolis e em sua formação ainda em curso, teve a oportunidade de estagiar em algumas escolas municipais da cidade. “Com isso eu tenho visto como é importante esse trabalho desenvolvido na educação básica”. E continua, “vendo essas mulheres que me inspiram quero continuar estudando, terminar a graduação, fazer pós, mestrado e me qualificar porque a educação permite que as mulheres não sejam subjugadas, esse é o caminho”.
Influências
Há um ponto em comum na fala de todas as pesquisadoras aqui homenageadas: todas tiveram outras mulheres que as influenciaram a seguir na carreira. São depoimentos que demonstram que chegar onde nenhuma mulher chegou antes é mais significativo quando se deixa a porta aberta para as próximas que virão.
A professora Marília Silva Vieira Pereira, que ilustra a presença da mulher na ciência, conta que foi influenciada por uma tia que era professora da educação básica, além de sua professora Dra. Rosana Zanelatto, que foi uma inspiração para seguir a carreira científica.
A professora Samantha Salomão Caramori comenta sua trajetória como estudante e uma professora que a inspirou: “me inseri na pesquisa desde quando ingressei como estudante de iniciação científica na Universidade Federal de Goiás, onde tive oportunidade de trabalhar com a professora Dra. Kátia Fernandes do ICB (Instituto de Ciências Biológicas), que me inspirou a desenvolver a carreira científica”, lembra.
Me inseri na pesquisa desde quando ingressei como estudante de iniciação científica na Universidade Federal de Goiás, onde tive oportunidade de trabalhar com a professora Dra. Kátia Fernandes do ICB (Instituto de Ciências Biológicas), que me inspirou a desenvolver a carreira científica
“Tanto na vida pessoal e profissional, a maior inspiração que tenho é a minha mãe, que de certa forma representa a luta de muitas mulheres goianas”, fala da servidora Rejane Borges que relata a trajetória da mãe, Dalva Maria Borges da Rocha. Segundo Rejane, sua mãe teve o direito ao acesso à educação negado durante a infância, por falta de políticas públicas inclusivas. Iniciando muito jovem sua vida profissional para ajudar no sustento da família, acabou deixando seu sonho da educação formal em segundo plano.
Tanto na vida pessoal e profissional, a maior inspiração que tenho é a minha mãe, que de certa forma representa a luta de muitas mulheres goianas
E assim, Dalva foi se realizando com as conquistas de seus filhos, mas precisava de mais e depois de uma vida inteira de trabalho, retornou às salas de aula, conseguiu concluir o ensino médio e hoje, aos 69 anos de idade, alimenta o sonho de se graduar no ensino superior. Mesmo não tendo mulheres cientistas na família, a professora Hélida Ferreira da Cunha diz que sempre teve apoio para estudar e se profissionalizar na área que quisesse. E para além do ambiente familiar, Hélida se inspirou em muitas cientistas, a exemplo da engenheira agrônoma Ana Maria Primavesi, precursora da agroecologia no Brasil. “Ela inspirou muita gente com seus ensinamentos e ativismo em relação ao cuidado com o meio ambiente na produção de alimentos", salienta.
Além disso, a professora Hélida escolheu a profissão mesmo tendo consciência de que a mulher sempre tem alguma restrição no cenário profissional porque há limites em relação à necessidade de cuidar da família. “Parece que a sociedade entende que só as mulheres têm esse compromisso”, diz.
"Durante a minha graduação tive muitas professoras que me inspiraram", coloca Luciana Damacena Silva. E diante de muitas figuras inspiradoras, o nome da doutora em educação Solange Martins Oliveira Magalhães foi citado repetidas vezes. Solange é pedagoga e também psicóloga formada pela Universidade Federal de Goiás e incentivou Luciana a trilhar seu caminho na docência e pesquisa.
Durante a minha graduação tive muitas professoras que me inspiraram
Marcella Santos se inspira muito na mãe, Mursia Arantes, que abandonou a carreira para cuidar dela e de sua irmã. Acreditando na ação transformadora da educação, Mursia retornou aos estudos quando Marcella tinha 10 anos e foi aprovada em um concurso público estadual. “Ela sempre me aconselhou a estudar e me mostrou os melhores caminhos a serem seguidos”, comenta.
Ela sempre me aconselhou a estudar e me mostrou os melhores caminhos a serem seguidos
A professora Odália Bispo diz que a docência acabou entrando em sua minha vida de uma maneira muito natural porque sua mãe era professora. “Eu sempre vi o gosto dela por ensinar, na simplicidade dela fazendo as pessoas aprenderem. Até hoje eu vejo seus ex-alunos muito agradecidos pelo aprendizado que adquiriram com ela”.
E tendo sua mãe como inspiração, Odália saiu do interior do estado em busca de formação profissional. "Com uma mala nas costas, fui desbravar o mundo e hoje sou muito feliz por ter chegado até aqui”. E sobre o 8 de março, comenta: “falar do dia da mulher é muito bacana, porque ser mulher para mim é uma honra. Eu sinto a necessidade de falar do potencial que a mulher tem e buscar igualdade de direitos e oportunidades”.
Falar do dia da mulher é muito bacana, porque ser mulher para mim é uma honra. Eu sinto a necessidade de falar do potencial que a mulher tem e buscar igualdade de direitos e oportunidades
Isadora Rodrigues, estudante de pedagogia, conta que em sua família nunca houve pessoas que chegassem ao nível superior na vida profissional, até que sua irmã mais velha, Priscila, completasse a graduação também na UEG, “algo que me inspirou bastante para continuar essa mudança na nossa família”, diz Isadora.
(Dirceu Pinheiro|Gilnara Peixoto - estagiária|Comunicação Setorial|UEG)