Profª Drª Mônica Nadler Prata- Unidade Universitária Goiânia- Laranjeiras
(Artigo faz parte da tese de doutorado defendida na University of North Carolina (UNC)- USA
Narrativas: o Significado Escrito
Em seu artigo “Discursos Narrativos e o Sistema Narrador”, Tom Gunning explica o termo “narrativa” de acordo com sua própria reinterpretação teórica de aproximação a Gérald Genette. De acordo com Gunning, a narrativa tem três significados diferentes: relato, narrativa discursiva e o ato de narrar. Relato é o conteúdo presente no discurso. Discurso narrativo refere-se ao arranjo de significados, o texto propriamente como um meio de expressão. O ato de narrar refere-se ao fato de alguém recontar algo, o ato de contar uma história. (Gunning 461)
Hans Staden, viajante alemão do século XVI, esteve no Brasil e resolveu narrar suas aventuras no Novo Mundo. A primeira edição da narrativa discursiva de Hans Staden, Die Wahrhaftige Historie der wilder,nackten,grimmigen Menschenfresser Leute foi dedicada à princesa Philippa of the Landgrave of Hesse, e publicada em Marburg, Alemanha, em 1557. Depois foi traduzida para o holandês, latim, flamenco, francês, inglês e português. A primeira edição em português tem data de 1892, e foi feita por Tristão de Alencar Araripe na Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Araripe baseou sua tradução na versão francesa de Ternaux-Compans (1838). A segunda edição em português foi traduzida em 1900 por Alberto Lofgren e contém notas do Tupi lingüista Teodoro Sampaio. A tradução de Löfgren é baseada na segunda edição alemã de 1557. A terceira edição em português contém apenas a primeira parte de Duas Viagens e foi feita por Monteiro Lobato em 1925. O texto de Lobato não é baseado em nenhuma edição específica. É uma interpretação livre do texto de Staden. Lobato também adaptou a narrativa de Staden para crianças com desenhos especiais. A quarta edição em português foi publicada em 1930. É uma edição revisada e expandida da segunda edição em português de Löfgren. A quinta edição em português, de interesse aqui, foi traduzida por Guiomar de Carvalho Franco e publicada em 1942. A tradução de Guiomar é baseada na edição alemã de Karl Fouquet de 1941. A edição de Fouquet é a “transposição da edição princeps para o alemão moderno.” (Staden,Duas Viagens 24), que significa a tradução da primeira edição alemã (1557) para o alemão moderno. Além disso, Duas Viagens ao Brasil arrojadas aventuras no século XVI entre os antropófagos do Novo Mundo(1942), é a tradução em português da versão original alemã de Staden, que é uma representação da representação. Francisco de Assis Carvalho Franco afirma:
A tradução feita por Guiomar de Carvalho Franco cingiu-se literalmente ao texto de transposição do Dr. Karl Fouquet, e obedeceu à grafia do mesmo para os termos e as frases em língua tupi; também procurou conservar a linguagem ingênua de Staden.Todas as notas de pé de página são da nossa autoria. ( Duas Viagens 24).
Portanto, a tradução aqui analisada contaas mesmas histórias do texto original, porém o arranjo dos significados releva uma representação da representação inicial do Índio.
Duas Viagens é uma narrativa dividida duas partes e reconta a história das duas viagens de Staden ao Novo Mundo. Sua primeira viagem durou um ano, de 1547 até 1548. Ele deixou a cidade de Kamper nos Países Baixos em 29 de março de 1547, e retornou a Lisboa, Portugal, em 8 de outubro de 1548. Nessa ocasião, ele trabalhou na artilharia das forças armadas portuguesas sob a liderança do capitão Penteado e fez seu primeiro contato com os nativos, especialmente com os Potiguaras, que eram os aliados portugueses, em uma região que atualmente é o estado da Paraíba.
A segunda viagem de Staden, foco da presente análise, durou de 1550 a 1555. Desta vez, ele trabalhou como um artilheiro da armada espanhola de Sanabria e depois no Forte de Bertioga (estado de São Paulo). Em janeiro de 1554, Staden foi capturado pelos índios Tupinambás enquanto procurava por seu escravo Carijó nas vizinhanças do Forte de Bertioga. O artilheiro alemão ficou preso por nove meses, período no qual ele aprendeu muito sobre os costumes e estilo de vida dos índios brasileiros.
De acordo com Staden, os índios são raramente considerados pessoas cordiais, mas sim aborígenes selvagens. O artilheiro alemão não visitou ou passou alguns dias como convidado entre os índios, mas Staden permaneceu prisioneiro por quase nove meses. Os Tupinambás, que eram aliados dos franceses, consideravam Staden um inimigo porque eles não estavam certos de sua nacionalidade- francesa ou portuguesa. Além disso, sem uma nacionalidade reconhecida, a morte realmente era um desafio para Staden. Na maioria das vezes, ele não sabia o que esperar de um dia para o outro. Ele afirma que foi forçado a testemunhar mortes de outros prisioneiros. Igualmente, ele teve que aprender todos os procedimentos formais do ritual de canibalismo.
Em 1557, um ano depois de retornar à sua terra natal, Duas Viagens ao Brasil foi publicado em alemão em Marburg, Alemanha. A narrativa é uma áspera crítica à brutal e implacável natureza dos Tupinambás. Staden inclui alguns desenhos de rituaiscanibais para validar sua opinião. Peter Hulme argumenta que a representação do “American Other”, iniciado com a viagem, foi construída para servir à economia Européia e à exploração ideológica do continente. Hulme hesita a respeito da autenticidade da prática de canibalismo mencionada nos arquivos escritos de sua primeira viagem (Hulme 45-57).
Staden dedica uma parte considerável de sua narrativa à descrição do ritual canibal praticado pelos Tupinambás. Renata Wasserman explica que “o norte europeu preferia as mais sensacionais histórias de guerra e canibalismo (64).” Os alemães, ao contrário dos portugueses, franceses e espanhóis, não estavam diretamente envolvidos no processo de colonização do Novo Mundo. Os países colonizados tiveram que produzir histórias que seriam, de alguma maneira, convidativas para novos colonizadores. Histórias de pessoas hospitaleiras, generosas e inocentes bem como de terras férteis que iriam encorajar novos acordos. Por outro lado, descrições contrastantes de canibais americanos propagados por Staden e outros viajantes serviram como um meio de justificar a necessidade de introduzir a fé cristã para os “pagãos” na América. No capítulo 39 de sua história, Staden afirma que sua motivação para escrever o livro era o testemunho de sua fé em Deus:
Portanto, peço ao leitor que queira considerar o que escrevo. Dou-me a este trabalho, não pelo prazer de escrever alguma coisa nova, mas exclusivamente para trazer à luz os benefícios que Deus me prestou. (Staden, Duas Viagens 121)
Além disso, a descrição de que os índios eram selvagens e sem religião foi uma desculpa conveniente para asatrocidades européias na América. Os habitantes do Novo Mundo eram tão mal tratados pelos exploradores a ponto da Igreja ter que intervir. Em 1573, o Papa João Paulo III impôs o chamado “Sublimis Deus Sic Dilexit”- que proclamava humanidade essencial a todos os índios, uma vez que os índios eram seres humanos e que teriam que ser tratados como tal (Palencia-Roth 28).
Informações de Staden a respeito da vida e da cultura dos indígenas são enfatizadas em sua segunda viagem, época em que ele morou com os Tupinambás. A segunda parte do livro, “A terra e seus habitantes”, consiste em notas a respeito de terra, pessoas e animais. No capítulo 9 da segunda parte, Staden descreve a aparência física geral dos Tupinambás, que é muito similar à descrição feita há algumtempo por Pêro Vaz de Caminha:
São pessoas bonitas de corpo e estatura, homens e mulheres igualmente, como as pessoas daqui; são queimados do sol, pois andam todos nus, moços e velhos, e nada absolutamente trazem sobre as partes pudendas. Mas se desfiguram com pinturas. (Duas Viagens 161)
Staden primeiro chama a atenção ao mencionar que os índios americanos são pessoas como os europeus. Depois ele aponta a diferença das duas populações ao enfatizaraspinturas e os piercings nos corpos nus dos nativos. Os “civilizados” europeus viam os sinais culturais dos Tupinambás não como adereços, mas como uma desfiguração do corpo. Nos capítulos 16 e 17 da segunda parte, Staden salienta uma descrição mais detalhada do homem e da mulher indígena, incluindo suas práticas canibais. Essas referências são predominantes no discurso narrativo e servem para reforçar a natureza cruel dos índios.
Ocasionalmente, Staden comenta a respeito da generosidade e delicadeza dos nativos:
Aquele que apanha muito peixe reparte com os outros que pescam poucos.” (Duas Viagens 159); é raro ver porém que se desavenham.São muito benévolos entre si; o que um tem em maior quantidade para comer do que outro cede-lh’o. (Duas viagens 167)
O prisioneiro alemão ficou impressionado com o fato dos aborígenes não terem noção de propriedade privada. Não havia sentimento de posse a e inveja era completamente banalizada. Os Tupinambás tinham o costume de partilhar suas esposas e suas filhas com os prisioneiros ou com convidados estrangeiros sem nenhuma restrição. Caso a criança nascesse de uma relação que não fosse legítima, ela deveria ser comida pelos aborígenes:
Dão-lhe então uma mulher,que dele cuida,servindo-o também. Se tem dele um filho,criam-no até grande,matam-no e o comem,quando lhes vem à cabeça. (Staden, Duas Viagens 179)
A representação esporádica dos índios como seres amáveis não se sobrepõe à ferocidade dos canibais, e é legitimada por Staden nos episódios reiteram a imagem brutal do Outro. Em vários momentos, o legendário chefe Tupinambá chamado Cunhambebe é mostrado como comedor de restos mortais humanos:
Do chefe Cunhambebe já tinha ouvido falar muito. Devia ser um grande homem , e um grande tirano, que com prazer comia carne humana(98). Durante isto, tinha à sua frente grande cesto cheio de carne humana.Comia de uma perna,segurou-m’a diante da boca e perguntou-me se também queria comer. Respondi:“ Um animal irracional não come outro parceiro, e um homem deve devorar outro homem"” Mordeu-a então e disse: “Jaruará ichê”. “Sou um jaguar.” (Duas viagens 132)
Para reforçar a idéia de selvageria nata, o comportamento de um garoto indígena lembra aos leitores a crueldade de Cunhambebe:
Lá estava entre nós um menino, que tinha um osso da perna do escravo com alguma carne, e o comia. Disse-lhes que devia jogá-lo fora. Zangou-se, e todos os outros,comigo; disseram que tal lhes era legítimo pasto, e que devia dar-me por satisfeito com isso. (Duas viagens 113)
Encontros violentos entre europeus e índios também serviram para reforçar a imagem de truculência desses. Staden constantemente refere-se à barbaridade dos Tupinambás com seus inimigos. Na passagem abaixo, ele testemunhou dois inimigos dos Tupinambás sendo devorados , enquanto ele relutantemente participava do episódio:
Aqueles que estavam muito feridos foram arrastados à praia, mortos imediatamente e cortados em pedaços, segundo o seu costume, assando então a carne. Entre os que foram assados nessa noite, encontravam-se dois mamelucos que eram cristãos. (Duas Viagens 129)
As observações alemãs dos costumes dos índios estão associadas às diferenças entre as crenças dos índios americanos e o cristianismo. Staden, confiante de sua superioridade cristã, naturalmente vê os habitantes do Novo Mundo como almas a serem salvas. John H Elliot explica:
...no final do século XV e começo de XVI, o Cristianismoera incapaz de responder, a não ser através de rejeitar violentamente os estranhos nativos religiosos que se foram revelados em seu olhar. (Elliot 16)
Staden ainda mantém uma visão pessimista das práticas indígenas proveniente do início de seu cativeiro. O momento em que o prisioneiro alemão chega à vila Tupinambá, ele se sente miserável e impotente face ao protocolo indígena. Primeiro, as mulheres depilaram suas sobrancelhas, depois, desafiaram-no com uma ibira-pema, uma ferramenta de madeira especialmente designada para matar presas. Staden se compara com Cristo:
O que tinham em mente, quando assim me arrastaram,não sei. Pensei então nos sofrimentos do nosso Salvador Jesus Cristo, como foi inocentemente torturado pelos vis judeus. (Duas Viagens 89)
Em uma atitude claramente eurocêntrica, Staden é incapaz de compreender as tradições nativas. Ele avalia a tradição nativa sob uma visão totalmente eurocêntrica. Robert Stam explica o termo “eurocentrismo” como modelo colonizador do mundo. De acordo com Stam:
O Eurocentrismo primeiro emergiu como um discurso racional para o colonialismo, o processo através do qual os poderes europeus atingiram posições de hegemonia no mundo. Eurocentrismo, como nas perspectivas renascentistas das pinturas, vislumbrou o mundo através de um ponto privilegiado. (Unthinking 22)
Em seu livro, La Religion Tupinambá et sés Rapport avec celle dês Autres Tribus Tupi-Guaranis (1928), Alfred Metraux afirma que apesar dos índios terem um conjunto de crenças religiosas, a maioria dos viajantes do século XVI os consideravam como pessoas sem religião (Metraux 53). Pêro Magalhães de Gândavo é um desses viajantes. Referindo-se à língua nativa, o viajante português escreve:
(...) Carece de três letras, convém saber, não se acha nela f, nem l, nem r, coisa digna de espanto, porque assim não tem fé , nem lei, nem rei, e desta maneira vivem desordenadamente sem terem além desta conta, nem peso, nem medida.( Gândavo 102).
Dentro do mesmo ponto de vista de Gândavo, Staden também acredita em sua superioridade religiosa sobre o Outro. Do momento de sua prisão até o dia que ele foi libertado, ele enfatiza sua posição como um cristão em constante conflito com as crenças tupis. O prisioneiro europeu enxerga os índios do Novo Mundo como pessoas supersticiosas, cujas práticas religiosas endossam a adoração de materiais como os maracás, objeto de adorno que supostamente falam e prevêem o futuro. Em várias passagens, ele menciona a autoridade absoluta dos pajés sobre os índios. Os pajés eram os líderes espirituais que tinham poderes mágicos para encantar os maracás. Na visão de Staden, as atividades desses líderes estão associadas aos maus espíritos, como bem às premonições das bruxas:
(...) quando cheguei entre eles e falaram dos maracás, calculei que fosse, talvez, uma arte do diabo, pois narravam-se muitas vezes como os objetos falaram (174)(...) A mulher de meu amo, a quem fui mandado para ser morto. Começou uma noite fazer profecias, contando a seu marido que lhe vinha visitar um espírito, de terras estranhas. ( Duas viagens 175)
Em Imagens da Colonização. Ronald Raminelli argumenta que durante o período de colonização, religiosos missionários europeus viam os pajés como serventes do diabo. Rodeado por uma misteriosa aura, eles eram uma ligação importante entre os índios e os espíritos do mal. Apesar dos missionários tentarem convencer os índios da falsidade dos pajés, esses líderes espirituais eram muito poderosos e capazes de controlar comunidades inteiras. Ciente de todos esses fatos, Staden decidiu mudar os costumes “religiosos” dos Tupinambás, falsificando algumas previsões a respeito do mau tempo e de doenças alienígenas introduzidas pelos europeus. Ele atribuiu o azar dos nativos à insatisfação do Deus Cristão com as práticas canibais. Staden afirmou que a maioria de suas previsões estava realmente correta. Como resultado, os poderes supranaturais dos prisioneiros aterrorizavam os Tupinambás, que, como crianças, começaram a temer o Deus Cristão. Staden percebeu que esses canibais ferozes eram também indivíduos infantis. O autor alemão descreveu a natureza ingênua dos índios, referindo-se à sua pueril personalidade:
Estavam ,portanto, os selvagens bem intencionados para comigo, pois eu lhes havia profetizado- por acaso- dizendo que os inimigos viriam ao nosso encontro.Quando isso aconteceu, disseram que eu era melhor profeta do que seus maracás. (Duas viagens 31)
Essa imagem paradoxal de ingenuidade natural e maldade natural está presente em toda a narrativa discursiva de Staden. Stuart Hall coloca que “imagens não carregam significados ou significam algo sozinhas. Elas acumulam significados, e jogam os mesmos um contra o outro”.(Representation 232). Esse acúmulo de significados é o que Hall chama de “espetáculo” do Outro. Por isso, as imagens que representam os nativos das Américas, (incluindo as de Staden) não são uniformes ou coerentes. Elas fazem associações diferentes de acordo com as circunstâncias, com o propósito do discurso narrativo, e com o público, nesse caso para agradar e satisfazer a curiosidade da população do “Velho Mundo”.
Referências Bibliográficas:
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GÂNDAVO, Pero Magalhães de. Tratado da terra do Brasil ;
História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Org. Leonardo Dantas Silva. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massangana, 1995.
GUNNING, Tom. “Narrative Discourse and the Narrator System.”
Film Theory and Criticism: Introductory Readings: New York: Oxford UP, 1999. 461-72.
HALL, Stuart. Representation, Cultural Representations and Signifying Practices. London, Thousand Oaks: Sage, 1997.
HULME, Peter. Cannibalism and the Colonial World. New York: Cambridge UP, 1998.
MÉTRAUX, Alfred. La religion des Tupinambá et ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani, Paris, E. Leroux, 1928.
PALENCIA-ROTH, Michael. “The Cannibal Law of 1503.” Early
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STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil, arrojadas aventuras no século XVI entre os
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Paulo: Tipografia Gutenberg, 1942.
STAM, Robert. Unthinking Euro centrism, Multiculturalism and the Media. London;
New York: Routledge, 1994.
WASSERMAN, Renata R. Mautner.Exotic Nations: Literature and Cultural Identity in the United States and Brazil