Em 29 de janeiro de 2004 o Ministério da Saúde lançou a campanha Travesti e Respeito, a primeira campanha nacional voltada para travestis e transexuais. O foco da ação era a conscientização para o respeito a esta, que é considerada uma das populações de maior vulnerabilidade social, e também a inserção destas pessoas em todas as esferas do cotidiano: família, escola, lazer e trabalho.
Quando se analisam os números, fica mais evidente o quanto ações e políticas públicas voltadas para a população transgênera são importantes. Segundo relatório lançado nesta terça-feira, 29, pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2018, a cada 48h o Brasil registrou a morte de uma pessoa travesti, transexual ou não-binária.
Produzido por Bruna Benevides e Sayonara Nogueira, ambas transativistas, o relatório também confirma a baixa expectativa de vida da população, cuja a estimativa é de 35 anos, menos da metade que a média brasileira, que gira em torno dos 76 anos. De todos os assassinatos contabilizados pelas pesquisadoras – lembrando que não há dados oficiais disponíveis -, em 60,5% dos casos as vítimas tinham idade entre 17 e 29 anos.
Além da violência física e das interdições de acesso às quais se encontram submetidos, um dos principais entraves para a cidadania plena de travestis, homens e mulheres transexuais, é o desrespeito a seus nomes e gênero.O que para a maioria da população parece simples, se torna um verdadeiro entrave na vida dos transgêneros. Em termos educacionais, apenas 0,02% desta população chega às universidades brasileiras, reflexo de um processo de evasão escolar que beira os 76% no ensino médio.
Desfiando ainda mais esse novelo chegamos à idade de 13 anos. De acordo com o relatório, é por volta desta idade que as meninas trans, principalmente, são expulsas de suas casas. Reflexo da transfobia e da dificuldade em se tratar deste assunto no Brasil, as discussões sobre infância no País, em geral, não abordam esta infância.
Diante deste cenário, foi tão importante a Universidade Estadual de Goiás (UEG), seguindo uma série de documentos, portarias e recomendações oficiais, reconheceu em 3 de dezembro de 2015 o uso do nome social na Instituição – uma bandeira que àquela época era histórica para a população travesti e transexual. Mas foi a edição do Jornal UEG Outubro-Novembro, de 2014, em que as estudantes Eduarda Alkimin e Lorenna Raquelly contaram um pouco sobre às suas trajetória, que marcou a primeira grande ação da UEG entorno dessa discussão. Foram meses até que a pauta fosse fechada. E valeu a pena.
De lá para cá muita coisa mudou: Duda aguarda a formatura, Raquelly continua o curso e outras estudantes trans se tornaram visíveis na UEG. Um exemplo é Raika Beliny Barbacena da Silva, primeira aluna trans do Câmpus Iporá a defender monografia.
Hoje, 29, Dia Nacional de Visibilidade Trans, relembramos a matéria de 2014 e esperamos que daqui para frente possamos contar cada vez mais histórias de pessoas trans em nossa comunidade acadêmica. Boa leitura!
Um nome não é simplesmente um nome. Ele é, também, uma história que se constrói. Assim também é o corpo. Nome e corpo: duas possibilidades de se inscrever no mundo. Deveria ser simples, mas não é. Há pessoas a quem o direito de carregar suas identificações, e de remodelar seus corpos, encontra barreiras no exercício de suas histórias.
São sujeitos que, ao nascerem, foram assinalados como pertencentes a uma categoria de gênero em decorrência dos sexos que carregam entre as pernas. Mas ser “menina” ou ser “menino” se encontra além dos pretensos limites traçados pelas genitais circunscritas em nossos corpos.
Tornar-se, fazer-se. Existir
- Oi, tudo bom? Eu sou o Fernando, aqui da Coordenação Geral de Comunicação.
Após uma pausa para que as pessoas se identificassem, eu prosseguia:
- Estou ligando para fazer uma pesquisa sobre estudantes que se identifiquem como travestis ou transexuais na UEG. No câmpus de vocês há alunas ou alunos trans?
As reações eram as mais diversas. A resposta era sempre “não”. Depois de algumas tentativas já me perguntava se conseguiria encontrar travestis ou transexuais em algum dos câmpus da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Sabia de algumas ex-alunas travestis que já tinham se formado na UEG – uma delas, inclusive, hoje possui pós-graduação em uma instituição europeia. Seria possível que, em uma Universidade que se estende por todo o Estado, não encontraria uma aluna ou aluno trans atualmente?
As respostas negativas se repetiram até a chamada telefônica ao câmpus Formosa. Fui atendido pelo então diretor do câmpus, professor Fábio Santa Cruz.
“Sim, temos alunas transgêneros estudando conosco”. O tom de sua voz era firme e contundente. E o uso da palavra transgênero me chamou a atenção.“Sim. Nós temos alunas transgêneros em nosso câmpus”, reafirmou. E o fez ao usar o substantivo “alunas”, no feminino. Em conversa posterior com o professor fiz essa observação, sobre o uso do gênero na palavra, revelando minha surpresa. “A presença das meninas no câmpus foi um aprendizado para todos. Elas suscitaram o debate em Formosa e, a partir daí, começamos a entender a questão”, observou o diretor.
Foi assim que cheguei à Eduarda, 26. Nosso primeiro contato foi por telefone. Marcamos um encontro na semana seguinte, quando teria a oportunidade de conhecer, também, Lorenna Raquelly, 21, a outra aluna transexual do câmpus de Formosa.
Eram 14 horas de uma tarde quente em Formosa quando a porta se abre. “Oi, tudo bom?”, perguntei-lhe. “Tudo. Entra”, Eduarda respondeu. Feitas as apresentações, seguimos – ela, a fotógrafa e eu – pelo gramado de seu local de trabalho. Lembramo-nos que já havíamos nos conhecido na Conferência Estadual de Igualdade Racial do Estado, que ocorreu no ano passado.
Com a voz calma, ela começou a me relatar sua infância. Natural de Formoso de Minas, mudou-se ainda criança para a atual cidade em que mora. Estudante do 2º ano de História na UEG, optou pelo curso por sempre ser fascinada pela disciplina.
Aos 18 anos, depois de se assumir, percebeu que sua diferença não era a homossexualidade. “Eu não me via como gay e não buscava gays para me relacionar”, observa. Foi quando o contato com travestis da cidade a fez perceber quem, de fato, ela era.
“Nessa época eu conheci algumas travestis e comecei a usar roupas femininas para sair à noite”, revela. Mas as saídas com as roupas, que agora vestem o seu corpo diuturnamente, nessa época só eram possíveis com a ajuda de sua vizinha. “Era uma senhorinha. Quando eu ia para algum lugar à noite, levava minhas coisas para a casa dela. Deixava roupas, sapatos, maquiagem”, relembra entre risos.
Nesse momento chega Lorenna Raquelly. Ela me conta que, desde muito jovem, sempre se encontrou na fronteira entre os gêneros. “Sempre fui andrógina, sabe? Cabelo comprido, lápis de olho, nunca tive muitos pêlos”, disse-me.
A estudante de História se percebeu trans aos 16 anos. A primeira vez em que saiu com roupas femininas foi em uma festa em Sobradinho, no Distrito Federal, na casa de umas amigas. “Eu sempre fui vista como mulher. Mas era aquela coisa andrógina. Mas naquela noite foi diferente. Usei um vestidinho preto que peguei da minha irmã. Elas me maquiaram, eu coloquei salto”, lembra. Nos primeiros tempos essa situação era restrita a locais privados, entre amigos e contextos íntimos não familiares.
As mulheres Eduarda e Lorenna, desde sempre, exitiam. Mas agora se mostram. Duda (como Lorenna chama a amiga) nunca conversou com a família sobre a questão. Apenas chegou em casa sendo ela própria. Lorenna fez sua aparição pública em um concurso – quando foi eleita Miss Gay da cidade. Era um novo começo.
“Trans Autorizada”
Em determinado ponto de nossa conversa chega ao local o presidente da Associação de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais de Formosa. Interrompemos a prosa um minuto para que ele falasse com elas. Enquanto tomo um café, a conversa entre eles se desenrola até que Lorenna solta: “Eu sou transexual”, ao que ele pergunta: “Cadê o laudo?”, entre risadas.
O laudo ao qual ele se referia é o emitido pelo Hospital Universitário de Brasília (HUB), local onde as duas fazem acompanhamento médico. Tal laudo atesta que elas se encontram em dieta de hormônios e cuidados médicos para que possam realizar suas cirurgias de transgenitalização, ou seja, as readequações das genitais. Aparentemente, a situação não passa de uma “tiração” de onda entre pessoas que se conhecem, mas Lorenna observa que ela é muito comum.
Ela me diz que a vontade é fazer uma plaquinha com o tal laudo e colocar no pescoço, como um crachá, com a inscrição “Trans Autorizada”. E me explicou que essa história começou em um bar da cidade, onde elas tiveram que mostrar seus laudos para provarem que estavam em tratamento e, assim, que poderiam utilizar o banheiro feminino. Aliás, provar que são mulheres é um rotina na vida das duas. E o que é mais problemático: elas precisam, o tempo inteiro, ser autorizadas.
A confusão entre identidade de gênero e sexualidade é situação corriqueira. As duas me relataram episódios nos quais foram chamadas de “veados”. São tentativas de humilhação e escárnio público. Entretanto, como apontam diversas estudiosas do assunto, a ideia de gênero é fruto de expectativas socioculturais para significar socialmente os sujeitos como “homens” e como “mulheres”. Já a sexualidade é a forma como as pessoas estabelecem laços afetivos-sexuais.
As experiências trans são questões de gênero. O senso comum indica que o fator determinante para se entender alguém como homem ou mulher seja o pênis ou a vagina. Todavia, ser homem ou ser mulher não é uma questão de atributos biológicos. É, sim, um construto social que varia de acordo com a cultura e diz respeito aos sentires dos sujeitos. Nesse sentido, ser homem ou mulher independe da genitália, ou da “autorização” de uma cirurgia.
Pessoas que vivem a transexualidade podem ser homens ou mulheres. Vivem a hetero, homo ou bissexualidade. É por isso que Duda não é gay, pois se identifica como mulher e tem interesse por homens heterossexuais.
O corpo, como produto naturalizado em um processo político de controle, é plástico, mutável e sofre intervenções perpassadas pelo crivo social, sendo autorizadas ou não. E, novamente, se encontra a transexualidade no polo não autorizado das vivências possíveis o que leva ao entendimento de que relações com essas pessoas são moralmente rechaçadas.
O corpo, o nome e o direito
Cabelos, unhas, roupas e acessórios correspondem à ideia que Duda e Lorenna elaboraram sobre sua feminilidade. O que é bastante diferente para cada uma delas.
Os seus corpos vêm sendo moldados para atender às suas expectativas. E suas histórias são construídas a partir dos seus nomes. Nomes que elas fazem questão de ressaltar. “Eu corrijo mesmo. Só a minha mãe me chama pelo outro nome”, me diz Eduarda. Nas suas vidas acadêmicas, essa parece já ser uma questão superada.
“Lá na Universidade todos usam nossos nomes sociais. Com exceção de uma ou outra pessoa, principalmente professores novos, mas, mesmo esses, quando conversamos, passam a utilizar o nome correto”, observa Duda. Segundo o professor Fábio, essas questões foram superadas internamente com a comunidade acadêmica. “A cobrança e as demandas das meninas fizeram com que houvesse uma mudança de postura”, diz ele.
A reitoria da UEG é ciente de alunas travestis e transexuais na Instituição. Já se encontram em discussão, juntamente com a Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Estudantis (PrE), estudos para a formulação de ferramentas que garantam a permanência dessa população na UEG.
Para Marcos Torres, pró-reitor da PrE, a garantia do nome social oportuniza a inserção dessas pessoas em ambientes nos quais o uso dos seus registros civis se tornam um fardo. “Tão importante quanto a garantia de direitos é o debate. A Universidade precisa colaborar para a superação dos preconceitos e para a inserção dessa comunidade em espaços dos quais se encontra excluída”, afirma.
A responsabilidade social da Universidade envolve a criação de um ambiente seguro para que seus estudantes possam exercer, de maneira tranquila, suas cidadanias. Se a realidade para as pessoas trans é opressora, pois a elas é negado, cotidianamente, o direito primordial de ser quem se é, a UEG tenta modificar essa realidade.
“Seria um descompasso se nossa Universidade não assegurasse à população trans o direito de se colocar enquanto pessoas com um nome e uma identidade de gênero que precisam ser respeitados. É dever da UEG trabalhar para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária”, observa o reitor da Instituição, professor Haroldo Reimer.
(Fernando Matos | CeCom|UEG)