"Ensinar é um ato de amor, por isso um ato de coragem", Paulo Freire foi citado pela professora Flávia Valéria Melo quando apresentou o projeto de extensão "Diálogos", conduzido por ela com os alunos do curso de Direito do Câmpus Metropolitano - Sede Aparecida de Goiânia. Trabalhando o enfrentamento à violência de gênero, a iniciativa nasceu em 2020, ainda durante a pandemia, como uma resposta à necessidade de ir além das discussões teóricas em aula para realizar intervenções práticas nas comunidades mais vulneráveis.
A primeira edição do projeto em 2022 ocorreu de forma remota pelo Google Meet, contando com 2 bolsistas e 137 participantes, incluindo membros da comunidade externa e interna. Frente às estatísticas alarmantes e discussões durante a disciplina de antropologia jurídica, onde era discutida a violência a partir de uma perspectiva cultural, conforme Flávia conta, os alunos se questionavam se podiam fazer algo a respeito. Segundo a professora Flávia Valéria, que ministra aulas nos cursos de Direito e Administração em Aparecida de Goiânia e ciências contábeis em Anápolis, era necessário transcender os limites teóricos e levar o conhecimento acadêmico para além das salas de aula. "A violência é um fenômeno cultural e, como tal, precisa ser abordada não apenas na teoria, mas na prática, junto àqueles que a vivenciam diariamente", afirmou.
Em 2022, após o retorno gradual das atividades presenciais, o Diálogos foi submetido a uma chamada para projetos de extensão da UEG. A partir desse momento, a iniciativa começou a tomar forma física, com as primeiras rodas de conversa sendo realizadas em comunidades carentes de Aparecida de Goiânia. Na segunda edição, realizada em 2023, os encontros foram presenciais na comunidade Alto da Boa Vista, contando com 3 bolsistas e 134 participantes, novamente incluindo membros da comunidade externa e interna. "Não esperamos mais que as mulheres viessem até nós. Fomos até elas", contou Flávia.
O primeiro grande desafio foi identificar e se aproximar dessas comunidades. Com o apoio do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e de uma ONG local, o projeto alcançou comunidades carentes como a Ocupação Alto da Boa Vista, que fica na Vila Delfiori, onde mulheres viviam em situação de vulnerabilidade. "Nós não queríamos apenas discutir teorias, mas construir um espaço seguro onde as mulheres pudessem se abrir e compartilhar suas experiências", destacou a professora.
Desde o início, o projeto envolveu a capacitação dos alunos, que foram divididos em comissões responsáveis pela organização das palestras e das rodas de conversa. A profa. Flávia enfatizou a importância desse preparo: "Fizemos questão de que os alunos ministrassem as palestras, porque a vivência prática é essencial para a formação acadêmica."
Brenner Silva de Oliveira, estudante do segundo período de direito, destacou o impacto do projeto Diálogos em sua visão sobre a violência de gênero, enfatizando a importância de ouvir os relatos das mulheres na comunidade para identificar e entender as diferentes formas de violência. Conforme conta, o projeto foi essencial para ampliar sua compreensão sobre a violência estrutural na sociedade, indo além da teoria jurídica. "É muito fácil estudar a lei na teoria e fingir que está tudo bem, mas não é assim", afirmou. Brenner mencionou que o que o motivou a participar do projeto foi a necessidade de abordar temas sensíveis, como a violência de gênero, em contato direto com a comunidade. "A gente vê a realidade e percebe o quanto é importante discutir esses assuntos", comentou.
Raquel Neto Gomes Carvalho, estudante do quarto período de Direito, destacou o potencial de mudança que o Diálogos teve em sua vida profissional e pessoal. "O projeto tem impactado a minha visão sobre a violência de gênero, ampliando meu conhecimento e me dando mais autonomia. Agora, eu consigo identificar os tipos de violência e me sinto mais preparada para ajudar", afirmou. Raquel vê no Diálogos uma oportunidade única de desenvolver um olhar mais acolhedor e empático, habilidades essenciais para quem deseja atuar na área do Direito com sensibilidade e compromisso social. "O projeto tem transformado minha percepção sobre o tema, me capacitando a enxergar a realidade com mais clareza", acrescentou.
Outra aluna de Direito do Câmpus Metropolitano, Isabela Cândido, que está no segundo período, complementa essa visão, ressaltando o impacto de romper a distância entre o conteúdo teórico e a realidade social. "Participar do projeto é como dar humanidade aos dados e textos que estudamos. É necessário ter sensibilidade e buscar compreender o outro, e isso só é possível quando saímos da teoria e vivenciamos a vida como ela realmente é", explica. Para Isabela, o Diálogos não apenas amplia horizontes, mas também capacita os futuros profissionais a atuarem indo além do pragmatismo jurídico.
Em 2024, na terceira edição do projeto, os encontros presenciais passaram a ocorrer em uma comunidade quilombola, em Aparecida de Goiânia, com a participação de três bolsistas e 54 discentes extensionistas. Como o projeto ainda está em execução, a quantidade de participantes da comunidade externa permanece indefinida, mas a expectativa é acompanhar mensalmente um grupo permanente de até 40 mulheres. Na primeira roda de conversa, realizada no dia 14 de agosto deste ano, houve a participação de 29 mulheres da comunidade, além de suas crianças.
A profa. Flávia Valéria Melo ressalta que o sucesso do projeto depende muito da capacidade de criar um ambiente seguro e acolhedor para as mulheres participantes. "A gente quer construir um lugar onde as mulheres possam se ouvir e falar sobre o que estão passando, criando uma rede de apoio. Essa sempre foi a nossa prioridade desde o início", destaca. Para garantir essa segurança, o projeto seleciona no máximo 40 participantes em cada roda de conversa para que todas possam participar sem que nada comprometa.
"Um ponto importante é que você não vai para a comunidade sem comida", diz a professora, explicando que a comida é para mostrar à comunidade que as mulheres são bem-vindas, serão cuidadas e respeitadas. Esse foi mais um ponto que precisou ser organizado dentro da logística dos encontros. Pensando nisso, tiveram a ideia de fazer um bazar de roupas e acessórios para arrecadar fundos e comprar lanches da própria comunidade, ajudando o comércio local.
Além disso, ela e os alunos observaram que, desde a primeira edição presencial, grande parte das mulheres levava seus filhos com elas, por diversas razões. Os organizadores chegaram à conclusão de que era necessário se organizar quanto a isso também. "Pensamos em formas de receber essas crianças, porque alguns assuntos abordados são dolorosos e difíceis. Criamos uma comissão infantil e, embora não tivéssemos técnica e metodologia para trabalhar com crianças, os alunos abraçaram a ideia", lembra Flávia. Assim, os alunos aproveitavam a oportunidade para trabalhar com elas sobre comunicação não violenta e outras questões.
Outro aspecto importante abordado pelo projeto é a "espiral da violência de gênero", que Brenner mencionou em seu depoimento. A espiral descreve o ciclo de violência que muitas mulheres enfrentam em suas relações, começando com pequenas agressões e escalando até situações mais graves, como o feminicídio. "Entender que a violência é um ciclo e que muitas vezes a mulher está enredada nele é essencial para oferecer o suporte adequado", explica Flávia. Esse conhecimento teórico, aliado à prática vivenciada nas comunidades, tem capacitado os estudantes a atuarem de forma mais efetiva na prevenção e combate à violência de gênero.
A participação dos estudantes homens no projeto também tem sido incentivada, promovendo uma visão igualitária e inclusiva. "No início, os homens tinham receio de participar, mas trabalhamos com igualdade de gênero e todos podem se juntar a nós", ressalta Flávia. Para ela, o projeto é uma oportunidade de formar operadores do Direito que sejam sensíveis às questões de gênero e capazes de atuar com empatia e compromisso social.
“Houve muitas dificuldades”, a professora recorda que, além do sol quente, no final do projeto, no ano passado, não puderam contar com o espaço cedido pela ONG que os ajudava, pois estava em reforma. Diante disso, resolveram que seria interessante convidar as mulheres a irem até o câmpus da UEG em Aparecida para fazerem o encerramento daquele semestre. "Fizemos do limão uma limonada, reunimos-as para receberem um certificado de participação que chamamos de diploma", conta a professora.
Na ocasião, a professora e os alunos pensaram em como presentear as mulheres, fugindo do usual, que seriam coisas para casa ou brinquedos para os filhos. "Fomos atrás de incentivo de empresas de beleza para presentear nossas participantes. Ganhamos kits lindíssimos com xampú, condicionador, hidratante e maquiagem", que, conforme a professora conta, fizeram o dia de cada mulher que esteve lá mais feliz.
No entanto, apesar dos avanços e do impacto positivo do projeto, a profa. Flávia fala da falta de financiamento como um desafio constante, e os próprios estudantes têm se mobilizado para arrecadar fundos, seja organizando bazares ou contribuindo com dinheiro para as reuniões. Ainda assim, a expectativa para o futuro do projeto Diálogo" é de crescimento e fortalecimento. Com a união de estudantes, docentes e a comunidade, a esperança é que o projeto se torne uma referência no enfrentamento à violência de gênero e continue a transformar vidas, tanto das mulheres atendidas quanto dos futuros profissionais que se formam com uma visão mais humanizada e consciente do papel social do Direito.
Novos encontros
As vagas continuam abertas, e as próximas rodas de conversa acontecerão nas seguintes datas:
18 de setembro, 9 de outubro, 6 de novembro e 11 de dezembro, das 14h às 16h30, no Centro Cultural Quilombolas, localizado na Rua Péricles com Rua Pitágoras, no Setor Vila Delfiori, em Aparecida de Goiânia.
Todos podem participar e bastam se inscrever por aqui.
Bazar
O Projeto Diálogos realizará também um bazar beneficente no dia 22 de outubro para arrecadar fundos para cobrir despesas do projeto, como lanche, transporte e logística das rodas de conversa.
Itens aceitos:
Roupas masculinas e femininas
Calçados masculinos e femininos
Bonés
Brincos
Artigos variados (desde que estejam em boas condições)
O ponto de coleta será na caixa disponível ao lado das salas dos professores, no Câmpus Metropolitano da UEG, em Aparecida de Goiânia.
(Gilnara Peixoto - estagiária de jornalismo da Comunicação Setorial|UEG)